I
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
II
E só me veja
No não merecimento das conquistas.
De pé. Nas plataformas, nas escadas
Ou através de umas janelas baças:
Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.
E só me veja no não merecimento e interdita:
Papéis, valises, tomos, sobretudos
Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar
de púrpura e desgosto, vendo através de mim
navios e dorsos).
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.
Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis
Machucadas de gozo.
E que jamais perceba o rocio da chama:
Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
III
Isso de mim que anseia despedida
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
(Para perpetuar o que está sendo)
VII
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitosPorque me fiz tanto de ressentimentosQue o melhor é partir. E te mandar escritos.Rios de rumor no peito: que te viram subirA colina de alfafas, sem éguas e sem cabrasMas com a mulher, aquela,Que sempre diante dela me soube tão pequena.Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.Perdi-me tanto em tiQue quando estou contigo não sou vistaE quando estás comigo vêem aquela.
VIII
Aquela que não te pertence por mais queira(Porque ser pertencenteÉ entregar a alma a uma Cara, a de áspideEscura e clara, negra e transparente), Ai!Saber-se pertencente é ter mais nada.É ter tudo também.É como ter o rio, aquele que deságuaNas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.Aquela que não te pertence não tem corpo.Porque corpo é um conceito suposto de matériaE finito. E aquela é luz. E etérea.Pertencente é não ter rosto. É ser amanteDe um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”Que bem me sabe inteira pertencida.
IX
Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.E pensas maravilha quando pensas ancaQuando pensas virilha pensas gozo.Mas tudo mais falece quando pensas tardançaE te despedes.E quando pensas breveTeu balbucio trêmulo, teu texto-desenganoQue te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomasLuta, ascese, e as mós do tempo vão triturandoTua esmaltada garganta... Mas assim mesmoCanta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...Canta o começo e o fim. Como se fosse verdadeA esperança.
Hilda Hilst
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